Tuesday 4 February 2014

«that's wonderful my dear - now, eat your carrots before they get cold»




J.M. Coetzee nasceu na África do Sul, Cidade do Cabo, em 1940.

A Vida e o Tempo de Michael K
1983
Tradução de Ricardo Fernandes
D. Quixote


ao tirá-lo do ventre da mãe

o feto tinha crescido assim dentro de si durante todos aqueles meses. A criança não era capaz de mamar

mantinha-a afastada das outras crianças, porque os sorrisos e o cochichar delas a magoavam

habituou-se a ficar calado

a sua mente era atrasada

a expensas do Estado, passou o resto da infância na companhia de outras crianças igualmente defeituosas e infelizes, ali aprendendo a ler, escrever, contar, varrer, esfregar, fazer a cama, lavar pratos, cavar, fazer trabalhos manuais de verga e madeira

como servente de jardineiro

conseguindo, lentamente, ascender ao posto de jardineiro. 
Devido à sua face desfigurada, K não tinha namoradas.

Quando avistou o filho, desatou a chorar, levando as mãos aos olhos, de modo que os outros doentes não reparassem.

enfermeiras, que não tinham tempo para prestar assistência a uma velha, quando, por todos os lados, tantos jovens agonizavam tão espectacularmente.

quando o autocarro chegou, não havia lugares sentados
e cingiu a mãe num braço, a protegê-la

O ordenado era bom, os patrões pessoas correctas, e, porque era difícil arranjar emprego, Anna K não estava descontente.

Sofria de uma hidropisia.

Vivia apavorada com a ideia de que um dia a caridade dos Buhrmanns acabasse.

«perigo-gevaar-ingozi». Não havia luz eléctrica

mas nunca arredava do que lhe parecia ser o seu dever.

viera ao mundo para olhar pela mãe.

o projecto de abandonar a cidade, que poucas esperanças lhe dava, para voltar às pacatas terras de província da sua mocidade.

ela sonhava libertar-se da violência gratuita, dos autocarros repletos, das bichas nas mercearias, dos lojistas arrogantes, dos ladrões e mendigos, das sirenas durante a noite, do toque do sinal de recolher, do frio e da chuva, e voltar ao campo onde, se estivesse a morrer, ao menos havia de morrer sob um céu azul.

Com o dinheiro da mãe embrulhado em dois pacotes que enfiou nas peúgas

Armou num cantinho do quarto um ninho de almofadas e mantas e passava as noites sentado no escuro a escutar a respiração da mãe.

Houve disparos de metralhadora e tiroteio por entre os carros.

Uma mulher, que fugia com dificuldade, foi alvejada mortalmente.

frequentados pelos delinquentes da Bree Street, onde a polícia não se atrevia a entrar.

Por quanto tempo seria capaz de levar a mãe, transportando-a no seu carrinho de mão, a pedir esmola para comer?

Mas a caixa do correio dos Buhrmanns, para onde a polícia deveria remeter a licença, se é que a mandavam, estava encerrada, e, após a noite do saque, os próprios Buhrmanns tinham sido levados

- Os porcos não sabem que há guerra – observou. – Os ananases não sabem que a guerra avança. Os alimentos continuam a crescer. Alguém tem de os comer.

outro projecto: utilizar as rodas da bicicleta na construção de um carro maior para nele levar a mãe a passear.

Era uma espécie de riquexó, embora de construção tosca, capaz de suportar o peso da mãe;

Era uma perda de tempo ficarem à espera das licenças, disse. As licenças nunca mais chegavam; e sem elas não podiam viajar de comboio.

Durante horas discutiu com a mãe, admirado com a habilidade com que procurava convencê-la.

A mulher-polícia deu uma pancada no balcão, a ver se o calava. – Não me faça perder tempo; digo-lhe pela última vez, se a licença lhe for concedida, há-de recebê-la! Não vê toda esta gente à espera? Não percebe? O senhor é parvo? Próximo! – Esbracejando atrás do balcão, olhou para quem se seguia a K: - Sim, o senhor, diga! Mas K não saiu dali.

Sobre os joelhos da mãe colocou um cobertor e, no fundo, um pacote com alimentos, o fogão a petróleo e uma garrafa de óleo metida numa caixa e algumas peças de roupa sem valor.

Contudo, mantinha-se sorridente, para esconder o esforço que fazia.

alguém nos há-de ajudar


(do cap. 1)


- Tocavam música toda a tarde, até à noite, pelas oito horas. Parecia uma mancha de óleo que cobria tudo.
- A música serve para acalmar – expliquei. – Se não, podiam agredir-se uns aos outros e atirar cadeiras pelas janelas. A música serve para travar os impulsos selvagens. – Não sei se ele entendeu, mas sorriu, abrindo o seu lábio defeituoso.
- A música incomodava-me – disse. – Distraía-me dos meus próprios pensamentos.
- Mas que pensamentos é que querias ter?
- Pensava em voar – respondeu. – Sempre quis voar. Costumava abrir os braços e imaginar que voava sobre as vedações e por entre as casas. Voava baixo, sobre a cabeça das pessoas, mas sem ser visto por elas. Quando ligavam o rádio, ficava tão irritado que já não conseguia voar – e mencionou uma ou duas canções que mais o irritavam.

(do cap. 2)




2003





No Freedom




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