J.M. Coetzee nasceu na África do Sul,
Cidade do Cabo, em 1940.
A Vida e o Tempo de Michael K
1983
Tradução de Ricardo Fernandes
D. Quixote
ao tirá-lo do ventre da mãe
o feto tinha crescido assim dentro de si durante todos
aqueles meses. A criança não era capaz de mamar
mantinha-a afastada das outras crianças, porque os sorrisos
e o cochichar delas a magoavam
habituou-se a ficar calado
a sua mente era atrasada
a expensas do Estado, passou o resto da infância na
companhia de outras crianças igualmente defeituosas e infelizes, ali aprendendo
a ler, escrever, contar, varrer, esfregar, fazer a cama, lavar pratos, cavar,
fazer trabalhos manuais de verga e madeira
como servente de jardineiro
conseguindo, lentamente, ascender ao posto de jardineiro.
Devido à sua face desfigurada, K não tinha namoradas.
Quando avistou o filho, desatou a chorar, levando as mãos
aos olhos, de modo que os outros doentes não reparassem.
enfermeiras, que não tinham tempo para prestar assistência a
uma velha, quando, por todos os lados, tantos jovens agonizavam tão
espectacularmente.
quando o autocarro chegou, não havia lugares sentados
e cingiu a mãe num braço, a protegê-la
O ordenado era bom, os patrões pessoas correctas, e, porque
era difícil arranjar emprego, Anna K não estava descontente.
Sofria de uma hidropisia.
Vivia apavorada com a ideia de que um dia a caridade dos
Buhrmanns acabasse.
«perigo-gevaar-ingozi». Não havia luz eléctrica
mas nunca arredava do que lhe parecia ser o seu dever.
viera ao mundo para olhar pela mãe.
o projecto de abandonar a cidade, que poucas esperanças lhe
dava, para voltar às pacatas terras de província da sua mocidade.
ela sonhava libertar-se da violência gratuita, dos
autocarros repletos, das bichas nas mercearias, dos lojistas arrogantes, dos
ladrões e mendigos, das sirenas durante a noite, do toque do sinal de recolher,
do frio e da chuva, e voltar ao campo onde, se estivesse a morrer, ao menos
havia de morrer sob um céu azul.
Com o dinheiro da mãe embrulhado em dois pacotes que enfiou
nas peúgas
Armou num cantinho do quarto um ninho de almofadas e mantas
e passava as noites sentado no escuro a escutar a respiração da mãe.
Houve disparos de metralhadora e tiroteio por entre os
carros.
Uma mulher, que fugia com dificuldade, foi alvejada
mortalmente.
frequentados pelos delinquentes da Bree Street, onde a
polícia não se atrevia a entrar.
Por quanto tempo seria capaz de levar a mãe, transportando-a
no seu carrinho de mão, a pedir esmola para comer?
Mas a caixa do correio dos Buhrmanns, para onde a polícia
deveria remeter a licença, se é que a mandavam, estava encerrada, e, após a
noite do saque, os próprios Buhrmanns tinham sido levados
- Os porcos não sabem que há guerra – observou. – Os
ananases não sabem que a guerra avança. Os alimentos continuam a crescer.
Alguém tem de os comer.
outro projecto: utilizar as rodas da bicicleta na construção
de um carro maior para nele levar a mãe a passear.
Era uma espécie de riquexó, embora de construção tosca,
capaz de suportar o peso da mãe;
Era uma perda de tempo ficarem à espera das licenças, disse.
As licenças nunca mais chegavam; e sem elas não podiam viajar de comboio.
Durante horas discutiu com a mãe, admirado com a habilidade
com que procurava convencê-la.
A mulher-polícia deu uma pancada no balcão, a ver se o
calava. – Não me faça perder tempo; digo-lhe pela última vez, se a licença lhe for concedida, há-de
recebê-la! Não vê toda esta gente à espera? Não percebe? O senhor é parvo? Próximo! – Esbracejando atrás do balcão,
olhou para quem se seguia a K: - Sim, o senhor, diga! Mas K não saiu dali.
Sobre os joelhos da mãe colocou um cobertor e, no fundo, um
pacote com alimentos, o fogão a petróleo e uma garrafa de óleo metida numa
caixa e algumas peças de roupa sem valor.
Contudo, mantinha-se sorridente, para esconder o esforço que
fazia.
alguém nos há-de ajudar
(do cap. 1)
- Tocavam música toda a tarde, até à
noite, pelas oito horas. Parecia uma mancha de óleo que cobria tudo.
- A música serve para acalmar –
expliquei. – Se não, podiam agredir-se uns aos outros e atirar cadeiras pelas
janelas. A música serve para travar os impulsos selvagens. – Não sei se ele
entendeu, mas sorriu, abrindo o seu lábio defeituoso.
- A música incomodava-me – disse. –
Distraía-me dos meus próprios pensamentos.
- Mas que pensamentos é que querias
ter?
- Pensava em voar – respondeu. – Sempre
quis voar. Costumava abrir os braços e imaginar que voava sobre as vedações e
por entre as casas. Voava baixo, sobre a cabeça das pessoas, mas sem ser visto
por elas. Quando ligavam o rádio, ficava tão irritado que já não conseguia voar
– e mencionou uma ou duas canções que mais o irritavam.
(do cap. 2)
2003
No Freedom
No comments:
Post a Comment