[da Introdução - por Daniel Sampaio]
Conheci João dos Santos ainda estudante,
quando o convidei a participar num colóquio organizado pela cadeira de Psicologia
Médica da Faculdade de Medicina de Lisboa.
Com ele convivi muitas vezes, em diversos contextos,
...
num entrecruzar permanente de saberes diversos
e de experiências emocionais inesquecíveis.
Recordo-o quase todos os dias.
Ainda há um mês, perante um doente agressivo,
lembrei a narrativa que lhe fiz de um homem enorme que me ameaçava fisicamente
quando eu, jovem interno de Psiquiatria,
achava que o saber livresco dava resposta a todas as questões.
Olhou-me com um sorriso terno e disse-me do fundo dos seus olhos escuros:
Daniel,
você não precisa fazer mais do que imaginar
esse homem como uma criança perdida.
Já o conseguiu ver na infância?
A sessão seguinte transformou-me como terapeuta e, perdido o medo,
fui capaz de me envolver afectivamente com o doente e ajudar a criar alternativas necessárias à sua recuperação.
...
Foi com João dos Santos que aprendi a gostar de compreender a gente mais nova,
sem me identificar romanticamente com ela
e sem esquecer a importância dos seus pais [...]
com ele aprendi também a importância do trabalho de cooperação
entre Técnicos de Saúde Mental e professores
...
algumas palavras suas:
É necessário sobretudo exigir das autoridades
um mínimo de coerência e eficácia na acção
para que as crianças tenham direito à
habitação e alimento, saúde e educação.
Mas é necessário também tomar consciência de que actualmente os pais tendem a exigir,
e as autoridades a conceder,
a criação de instituições que resolvam tecnicamente
o problema social dos que trabalham,
sem a sua participação na elaboração de ideias, directrizes e programas,
que integrem a acção dessas instituições
numa base ideológica comum dos respectivos utentes.
Os pais tendem a abdicar da sua função educativa
e perdem dessa maneira a possibilidade de estabelecer com os filhos
uma relação espontânea e afectiva,
estimulante para o seu desenvolvimento
...
Sempre me impressionou o esquecimento
a que tem sido votada a obra de João dos Santos.
Centenas de professores encontrariam respostas
aos seus dilemas se lessem os seus textos,
dezenas de psiquiatras da infância e adolescência
ajudariam os mais jovens a pensar
e milhares de pais viveriam menos angustiados o seu dia-a-dia.
Pensava eu assim até conhecer Eulália Barros, algures na década de 80.
Nunca encontrei ninguém que tivesse interiorizado tão profundamente
a mensagem do seu mestre e a actualizasse com criatividade e rigor.
...
Nunca encontrei ninguém tão ferozmente anti-ideias feitas,
nem alguém que se fatigasse tanto com a hipocrisia e o falso modernismo.
...
O conceito de «andar na escola» está cada vez mais posto em questão.
Se perguntarmos a muitos jovens o que ele significa,
encontramos respostas bem diversas.
Para João dos Santos
andar na escola
é uma expressão muito adequada para explicar
que andávamos por lá à procura de uns recantos,
nos corredores, na escada e na "casinha",
onde a nossa imaginação florescesse,
ou andávamos a fazer jogo dramático sem sabermos.
Era bom, era só bom
Algumas crianças e jovens de hoje não subscreveriam este texto.
Emperrados em cargas horárias pesadas,
movimentando-se em edifícios cinzentos ou isolados nos seus problemas
sem possibilidade de falarem com adultos,
a escola vale às vezes só pelo convívio com os amigos
e pelo espaço de liberdade que ainda às vezes consegue conferir.
Às crianças mal comportadas na escola
aplica-se um «currículo alternativo» (que expressão terrível!)
ou enviam-se ao psicólogo.
Mais uma vez se esquece João dos Santos, que uma vez escreveu:
...as perturbações do comportamento
que chegam ao psicoterapeuta
são aquelas que se tornam psicologicamente insuportáveis
pela educação do indivíduo.
Aos pais inseguros no seu papel parental
recomenda-se vivamente que invadam o território escolar,
numa confusão de papéis que procurei denunciar no meu livro
«Vivemos livres numa prisão».
Vale aqui também citar os Ensaios sobre Educação de João dos Santos:
Entendo que se devem organizar grupos de pais,
com ou sem representantes de professores, e vice-versa.
Mas não concordo que se misturem os interesses,
os princípios e as técnicas dos vários interessados
e que assim se confundam, em grupos polivalentes,
os vários modelos educativos.
As crianças precisam de modelos
claros, securizantes a vários níveis
e coerentes.
As profundas alterações sofridas por Portugal nos últimos vinte anos
não tornaram menos actual a mensagem de João dos Santos
e esta é, sem dúvida, a primeira conclusão a tirar deste livro de Eulália Barros.
Os três preconceitos em Educação alimentados pelos pais
e que Santos escreveu no seu livro A Caminho de uma Utopia - um Instituto da Criança, mantêm toda a actualidade:
1 - A crença de que a Escola pode resolver o que se não fez ou perturbou a criança antes da idade escolar.
2 - A esperança de que o acolhimento afectivo que eventualmente falta à criança no meio familiar possa ser compensado pela escola e pelos professores.
3 - A ideia de que a aprendizagem das letras e dos "números", da leitura e das operações aritméticas é possível sem a prévia aprendizagem do convívio, das trocas afectivas e do diálogo que se estabelece na família.
Direi mesmo que o crescente número de crianças
com dificuldades de envolvimento afectivo parental
leva a que por vezes se exija aos professores o sarar de uma ferida praticada anos antes,
através do penso rápido
de uma didáctica mais agida que pensada e cada vez mais inglória.
Daniel Sampaio
Novembro 1998
OK GO In Control
escolheria eu
para como se deve, julgar o artista pela obra,
a sua pequena Casa da Praia,
que recebe as crianças que os sábios polivalentes
(deveria dizer-se poluivalentes)
classificam de desajustadas às escolas
e logo demonstram, porque aí se sentem livres
e em consonância com os Mestres
Professor Agostinho da Silva, 1984
No comments:
Post a Comment