Friday 28 March 2014

AS MORADAS








JARDIM DO MAR
Sophia de Mello Breyner Andresen



Vi um jardim que se desenrolava
Ao longo de uma encosta suspenso
Milagrosamente sobre o mar
Que do largo contra ele cavalgava
Desconhecido e imenso.

Jardim de flores selvagens e duras
E cactos torcidos em mil dobras,
Caminhos de areia branca e estreitos
Entre as rochas escuras
E, aqui e além, os pinheiros
Magros e direitos.

Jardim do mar, do sol e do vento,
Áspero e salgado,
Pelos duros elementos devastado
Como por um obscuro tormento:
E que não podendo como as ondas
Florescer em espuma,
Raivoso atira para o largo, uma a uma,
As pétalas redondas
Das suas raras flores.

Jardim que a água chama e devora
Exausto pelos mil esplendores
De que o mar se reveste em cada hora.

Jardim onde o vento batalha
E que a mão do mar esculpe e talha.
Nu, áspero, devastado,
Numa contínua exaltação,
Jardim quebrado
Da imensidão.
Estreita taça
A transbordar da anunciação
Que às vezes nas coisas passa.







mulher em vida
despedaçada e pobre
magnífica casa família obras
mergulho em si mesma
 na infinita demora
na paixão onde respiras não há ouro
nem fundo nem horas











Thursday 27 March 2014

the wisest could

















The wisest man I ever knew in my whole life
could not read or write.
At four o'clock in the morning, 
when the promise of a new day 
still lingered over French lands,
he got up from his pallet and left for the fields,
taking to pasture the half-dozen pigs
whose fertility nourished him and his wife.
My mother's parents lived on this scarcity,
on the small breeding of pigs that after weaning 
were sold to the neighbours 
in our village of Azinhaga in the province of Ribatejo.


José Saramago
Nobel Lecture, 7 Dec 1998
translation: Tim Crosfield, Fernando Rodrigues




O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida
não sabia ler nem escrever.
Às quatro da madrugada, 
quando a promessa de um novo dia 
ainda vinha em terras de França,
levantava-se da enxerga e saía para o campo,
levando ao pasto a meia dúzia de porcas 
de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher.
Viviam desta escassez os meus avós maternos,
da pequena criação de porcos que, depois do desmame, 
eram vendidos aos vizinhos da aldeia.
Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo.

José Saramago
Discurso na Academia Sueca
7 Dez 1998



 2001



Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta,
e quando chegou lá acima, que viu ele?
Nem a sorte nem a morte,
nem as tábuas do destino...
Era só uma flor.
Mas tão caída, tão murcha, 
que o menino se achegou, de cansado.
E como este menino era especial de história,
achou que tinha de salvar a flor.
Mas que é da água?
Ali, no alto, nem pinga.
Cá por baixo, só no rio,
e esse que longe estava!...
Não importa.




Thursday 13 March 2014

religião




debaixo do rosto felicidade jurássica
tumulto dos orgãos / relva do estádio
um palco caixão alto iluminado 
nos olhos está ele e também raiva 
espuma muito cansada e clara do mar
viagem ao fundo da terra viagem tão cara
amargura pela voz deixa-a calada / mentira prolongada
são os textos sobre ti não dizem nada / de importante são analgésicos 
até te ver, homem gentil / em despiste tristeza / amizade por este dom 
que é religião /quem compreende / solidão simultânea procurada 
missão impossível / quando se encontra
somos tão miseráveis e intermitentes
temos de ser humildes / e aceitar nisto ser uma / racha
logo nisto / que é a coisa mais importante / de todas



ser observado, ser ensinado por ela





Poema do Menino Jesus


por João dos Santos
Se Não Sabe, Porque É Que Pergunta?
Assírio & Alvim, 1988


Uma das coisas que eu ensinava na Faculdade,
quando era professor de Psicopatologia, 
era que não há observação 
sem que o indivíduo que observa 
se coloque na posição de ser observado.
Penso que é uma verdade inquestionável 
e extremamente importante.
Para que eu possa observar uma criança 
e portanto ajudá-la e amá-la, 
é preciso que me coloque em situação 
de ser observado por ela.
E não sei o que é mais importante,
se é a criança ser olhada,
(não é só ser olhada, é ser «vista»)
se é ver o outro.
Na educação mais primitiva, noutras civilizações,
noutras culturas, e até mesmo na Grécia
- onde a educação era muito severa, 
onde as crianças eram castigadas 
se não aprendiam a ler e a escrever como devia de ser, 
se não aprendiam a tocar lira 
- mesmo nessas culturas, 
creio que havia um contacto directo com as pessoas.
Eu acredito muito na função educativa da sociedade.
Quando a sociedade, a família, o clã, o grupo de amigos,
de pessoas da vila, da aldeia, do bairro 
não estão interessados na educação da criança, 
não há escola nenhuma que funcione.
A escola só por si não faz sentido.
Só faz sentido como local  onde se aprendem certas coisas.
Mas o que há de essencial na cultura,
que é a relação entre as pessoas,
tem que se aprender a todos os níveis do convívio.
...
É evidente para mim, como psicólogo da infância,
que uma criança de cinco anos sabe tudo da vida, 
sabe o essencial, sabe amar, sabe falar, sabe retribuir, 
sabe trocar, sabe dar e receber afecto.


https://www.youtube.com/watch?v=rOez2mFNk2s
Come Hell or High Water




«Quando a sociedade no decurso da História se complica
e perde o contacto com a educação da criança,
quando institucionaliza, ou melhor,
quando sacraliza a educação em estabelecimentos de clausura,
o diálogo perde-se,
o regulamento impõe-se,
o silêncio paira sobre o mal estar da criança,
a violência instala-se!
A tendência actual de instituir uma educação oficial 
a partir do berço conduz inevitavelmente 
à violência da sociedade contra as crianças,
dos adultos contra as crianças,
das crianças contra os adultos,
da criança contra a escola,
da escola e das autoridades contra a criança.»

João dos Santos
Ensaios sobre Educação II
Livros Horizonte, 1983









Wednesday 12 March 2014

until death do us part

palmas
palmas

                 palmas
palmas


                  flash
flash

                                   flash



palmas
numa vida verdadeira
há agora acções de amor
por causa dessa pessoa.


                              fama local

palavras


                  flash



fama global




                                  palmas



palavras






























































basta bastA basTA baSTA bASTA BASTA









João Sousa Monteiro

A escola acaba por convencer as crianças,
e até mesmo os pais e uma parte da sociedade,
que pensar é fazer aquelas coisas que põem os miúdos a fazer;
é saber a gramática,
é saber fazer contas,
é saber resolver problemas,
é saber de cor uma quantidade interminável de coisas 
que não interessavam realmente nada.

A ideia de que pensar e saber é isso, é extremamente nociva,
é prejudicial, julgo eu.
O pior serviço que a escola pode prestar a uma criança 
é acabar por convencê-la de que isso é saber pensar,
de que fazer isso «bem feito» é ser inteligente.
É absurdo a ideia de que um miúdo que tenha boas notas na escola
é um miúdo que sabe pensar!
Só por acaso é que é assim.

João dos Santos

Claro, pode acontecer que seja.
A pessoa mais prodigiosa que encontrei nesse campo, que eu achei que era genial, 
foi uma menina que andava no 2º ano do ciclo preparatório, portanto já adiantada,
que tinha umas notas muito baixas em português e levaram-na ao meu serviço 
por esse motivo. E eu pus-me a pensar se percebia a menina...

JSM

... que é uma coisa que a escola nunca faz!
A escola não está lá para perceber, está lá só para «ensinar»...

JS

E eu então pus-me a conversar com ela,
e a certa altura, como ela trazia o saco dos livros da escola,
pedi-lhe para me mostrar os livros, e ela trazia o livro de leitura,
e então havia um texto dum autor contemporâneo que tratava de qualquer coisa campestre,
e eu pedi-lhe para ela ler aquele texto
e para me contar a história verbalmente.
Ela contou-me muito bem, eu percebi bem a história 
e depois conversámos sobre o que se dizia nessa história 
e duns rios lá da terra dos pais,
e disse coisas muito bonitas e muito poéticas 
sobre a casa de jantar que dava para um vale
e no vale passavam carros e camionetas... 
Já não me lembro precisamente, mas era uma coisa muito bela. 
E depois disse-lhe:
então agora escreves isso, vais contar a história por escrito.
E na história por escrito, que tinha uma folhinha daquelas pequenas, 
de caderno da escola, tinha, sei lá, umas dez linhas de letra larga, 
ela realmente contava a história 
de uma maneira extremamente fria 
e quase destituída de conteúdo.
E eu pus-me a conversar com ela sobre o texto que ela tinha acabado de escrever 
e verifiquei que naquelas dez ou doze linhas de letra larga, 
havia pelo menos cinco palavras de que ela não sabia o significado, 
mas isso não se percebia, porque ela punha as palavras no sítio devido. 
E eram palavras como «águia», «chaparro», «floresta», «bosque»... palavras assim. 
Tenho a ideia de que ela julgava que bosque era um campo relvado, por exemplo.
E eu fiquei espantado perante aquele prodígio,
como se fica perante um tipo que salta não sei quantos metros em altura, à vara,
que é uma coisa que eu gosto muito de ver, ou que faz o triplo salto,
ou que vence a corrida dos 2000 metros ou a maratona...
fiquei assim perante um prodígio daqueles...
como quando vou ao circo ver fazer habilidades,
fiquei surpreendido.
Como é que uma criança pode ser tão capaz, tão capaz,
que consegue fazer um pequeno texto sobre uma coisa, 
não conhecendo cinco palavras
Por um lado é uma perversão total, inconcebível, 
mas por outro lado, o esforço daquela criatura é genial.
Aquilo poderia ter aí ao todo 50 palavras diferentes, se tanto,
e ela desconhecia cinco, e todas bem colocadas como se as conhecesse.
Ela devia ter cinco ou seis, ou talvez sete sobre vinte, 
não sei bem qual era a classificação daquela época, isto já foi há bastantes anos,
mas ela merecia vinte e tal!
Porque realmente é um prodígio fazer uma coisa daquelas...





















































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